DA AMIZADE



Já vos não chamarei servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos, porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer (Jo 15.15).


Após expor a sua real missão, Jesus traz alguns conselhos aos seus discípulos; e mais do que conselhos, os conscientiza do nível afetivo que terá com eles. Cristo poderia ter dito que ao morrer, ressuscitar e retornar ao Pai, se apresentaria como uma espécie de anjo da guarda, uma voz que soa em seus ouvidos ou um Ser Iluminado apontando o caminho a ser traçado. Mas não foi bem isso que aconteceu. Escolheu viver com eles como um amigo (φίλος).

Parece simples, mas para trabalharmos a amizade com Deus é necessário que devolvamos ao termo o valor que ele detera. Hoje, infelizmente, sofremos o esvaziar das palavras. Palavras como: amor, paz, fé, fraternidade, honestidade e muitas outras, perderam os seus reais sentidos. Para que possamos adentrar a história e tentar ao menos se aproximar do seu significado puro, trarei aqui algumas definições. 

De acordo com o dicionário biblehuba raiz “phil-” transmite afeto experiencial e pessoal, ou seja, de pessoa para pessoa. Você há de convir que Deus, na pessoa de Cristo, é um Deus pessoal, em outras palavras, é possível que haja uma amizade real entre Deus e o homem. O mais interessante desta relação é quanto à onisciência de Cristo; pois abrindo ou não os nossos segredos, ele os conhece todos. Partindo dessa lógica, orar a Deus, tendo Jesus como amigo não é orar inútilmente, mas trata-se de uma necessidade nossa. Descrever ao Senhor o que se passa em nosso coração não significa simplesmente informar ou conscientizá-lo da realidade em que vivemos, e sim botar para fora o que tem que sair. Não é assim com o canto, a poesia, o sorriso e as lágrimas, não dizem mais quando estão expostos?

A amizade pessoal que Cristo nos proporciona amadurece a ideia de que Deus não é tão grande que não possamos alcançá-lo e nem tão pequeno que não devamos confiar; Ele é Absoluto, perfeito e completo. Mesmo não carecendo do meu louvor, o adoro porque é o propósito de toda criação. Enquanto os animais despidos de razão exalam o seu louvor instintivo, nós, providos de escolha pessoal, ecoamos a nossa adoração ao Criador, Redentor e Santificador de nossas almas.

Que a amizade só é possível se for pessoal (racional), já aprendemos com a análise etimológica. A pergunta que se faz é: com relação às pessoas que estão neste laço afetivo, o que a amizade exige delas, individualmente falando? Segundo Aristóteles:

A amizade perfeita é a dos homens que são bons e afins na virtude, pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons, e são bons em si mesmos. Ora, os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos são os mais verdadeiramente amigos, porque o fazem em razão da sua própria natureza e não acidentalmente (ÉTICA A NICÔMACO, LIVRO III, p.174).

Pelo que o pensador estagirita propõe, a amizade genuína provém de pessoas virtuosas, boas por natureza e não por acidente. Partindo desta premissa, Jesus já deu provas suficientes que é bom, virtuoso e que não fez o que fez por impulso ou fruto do acaso. E nós, temos retribuído essa demonstração de amizade?

Sabemos que estamos longe de sermos bons, virtuosos e autores de uma amizade sadia. Veja, o texto diz: “tenho-vos chamado amigos”. Não somos nós que o chamamos de amigo; a iniciativa é sempre Dele. Só retribuímos aquilo que foi dado, portanto, a amizade que temos com Cristo é o resultado da sua amizade para conosco. Lembra do presentinho que os alunos davam no dia dos pais? O pai entregava o dinheiro para que o filho confeccionasse, na escola, a sua lembrancinha. De igual modo, só temos o que Deus nos deu.

Não é apenas a escassez de sentido nas palavras que a nossa sociedade está vivenciando; temos uma outra limitação que tem enfraquecido a relação com O Eterno. Trata-se da superficialidade afetiva. Podemos usar como exemplo um dos sintomas que as redes sociais ocasionam, a crise do “anônimo social”. Bauman e Leoncini contam que:

O psicólogo americano Philip Zimbardo fez um grupo de moças estudantes usarem capuzes e mantos como os da “Ku Klux Klan” a fim de torná-las anônimas; a outro grupo de alunas, ao contrário, não pediu que usasse nada. Solicitou aos dois grupos que aplicassem uma descarga elétrica em outra pessoa, e eis os resultados obtidos: as que envergavam o capuz mantiveram apertado o botão que comandava o choque por um tempo duas vezes maior que as de rosto descoberto (BAUMAN; LEONCINI, 2018, p. 33).

Esse fenômeno está em toda a esfera da sociedade. Observe os canais que divulgam partidos políticos e ideais religiosos; veja o nível dos combatentes. São os que mais se digladiam entre si; começam debatendo ideias e terminam, na maioria dos casos, agredidos. Para ser mais prático, você já deve ter percebido que a plataforma do Facebook tem uma licença de interação chamada “Adicionar amigo”. Se um indivíduo clicar nela e o outro o aceitar, ambos passam a ser amigos. Independente se são próximos ou não, os indivíduos perdem a equivalência de seres humanos e se transformam em meros símbolos. O notável é que em qualquer momento a linda amizade pode acabar. Basta a verdade do “amigo A” anular a verdade do “amigo B”, os comentários baixam o nível, o botão “Deixar de Seguir” é acionado e possivelmente, a tecla de “Bloqueio” passa a ser o próximo passo. Já imaginou Cristo te bloqueando, ao perceber que a tua verdade é como trapo de imundícias?  

A amizade proposta por Cristo, portanto, não é impessoal, entre bárbaros ou anônimos. Cristo nos convida à uma relação de pessoas íntegras, consistentes e acima de tudo íntimas.

Jesus foi cirúrgico ao esclarecer os motivos desta amizade: “porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho feito conhecer”. 

É natural que se sairmos à rua perguntando às pessoas o porquê da amizade, elas responderiam unanimemente que a amizade faz bem, que é um meio de relação humana, que é necessário para que o indivíduo cresça como pessoa e outros motivos mais. Receio que dificilmente encontraremos um humano acima da média que nos responderá: “amamos mais o desejo do que o ser desejado!” Essa afirmação não é minha, trata-se de uma fala fictícia de Nietzsche ao Dr. Josef Breuer, escrita pelo psiquiatra Irvin Yalom, em sua magnífica obra: Quando Nietzsche Chorou. Eu confesso que, mesmo tendo lido esta obra por duas vezes, essa frase, ainda me encanta. 

Veja o quanto ela descortina os nossos sentimentos; as lágrimas que a morte de um familiar produz em nós saem porque a dor é em nós e não necessariamente em quem partiu. Logo, eu amo o prazer que o familiar me proporcionou, e não o familiar. Nenhuma pessoa sóbria chora pela perda de alguém que não lhe deu prazer. Então, como é que teremos amigos verdadeiros, se a nossa amizade é com a sensação e não com a pessoa, dona da sensação?

Não é um exercício fácil. É natural que tenhamos prazer numa amizade, mas o que Jesus propõe tem a ver com uma relação que o fim último dela está no bem estar do outro, mesmo que eu tenha que me sacrificar. Infelizmente, a teoria do servir agora para receber depois sempre será o nosso calcanhar de Aquiles. Uma amizade pura, portanto, torna-se quase impossível. Ainda mais estando nós em uma sociedade extremamente materialista, onde o outro não é visto como um alvo do nosso amor, e sim, instrumento de prazer, serviços e demais vantagens. La Boétie, de modo brilhante, disse:

A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade (LA BOÉTIE, 2006, p.52).

Embora envolva prazer e benefícios, o objetivo último é, como disse Gregório (329-389 d. C.) ao seu amigo Basílio: “a amizade tem que ser tão íntima e tão profunda que os permita tornarem-se como uma única alma em dois corpos”.

Vimos até o presente momento que a amizade é pessoal; origina-se entre pessoas íntegras; desenvolve-se num ambiente real (alheia a qualquer tipo de virtualidade, redes sociais…) e que na sua prática, o prazer tem que ser apenas um atributo e não a essência.

Nas minhas considerações finais, dou a palavra a Marco Túlio Cícero (107 - 43 a.C.), o maior orador da Roma antiga:

A amizade não é senão uma unanimidade em todas as coisas, divinas e humanas, acompanhada de afeto e de benevolência: pergunto-me se ela não seria, excetuada a sabedoria, o que o homem recebeu de melhor de Deus. Alguns amam mais as riquezas, outros a saúde, outros o poder, outros as honrarias, muitos preferem ainda os prazeres. Essa última escolha é a dos brutos, mas as escolhas precedentes são precárias e incertas, repousam menos sobre nossas resoluções que sobre os caprichos da fortuna. Quanto aos que colocam na virtude o soberano bem, sua escolha é certamente luminosa, já que é essa mesma virtude que faz nascer a amizade e a conserva, pois, sem virtude, não há amizade possível! (CÍCERO, 1997, p.32).


POR DANIEL SANTOS 


REFERÊNCIA

BAUMAN, Zygmunt; LEONCINI, Thomas. Nascidos em Tempos Líquidos: transformações no terceiro milênio. Tradução: Joana Angélica d'Avila Melo. Rio de Janeiro: Editora Zahar, p. 33.

YALOM, Irvin D. Quando Nietzsche Chorou. tradução Ivo Korytowski. 35ª edição Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira Participações S.A, 2015, p. 144.

LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso Sobre a Servidão Voluntária (1549): Título original Discours de la servitude volontaire. L.C.C. Publicações Eletrônicas www.culturabrasil.org, 2006, p.52.

GREGÓRIO DE NAZIANZO, Oração 43,20: SCh 384, 165; Id., Oratio 43,20: PG 36, 514-523. In: Lecionário Monástico I, p.619.

CÍCERO, Marco Túlio. Saber Envelhecer, Seguido de Amizade. Tradução: Paulo Neves. Editora L& PM: Porto Alegre/RS,1997, p.32.


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