DA FELICIDADE

 



Sobrevieram-me pavores; como vento perseguem a minha honra, e como nuvem passou a minha felicidade (Jó 30.15).


Por conter prólogo, epílogo, êxodo e coro, a estrutura do livro de Jó é facilmente comparada às tragédias gregas. Independente se o helenismo do século V influenciou ou não a redação judaica, Deus usa tudo e todos a favor de seus propósitos. Deus é Criador e tudo que há provém de si e para si tudo retorna. Mas não é disso que vim tratar nesta reflexão. Hoje, o nosso assunto é a condição mais desejada pelos seres humanos, a augusta felicidade. E por mais estranho que possa parecer, Jó, ao meu ver, é um ótimo candidato para nos aproximarmos dela e de suas implicações.


Sobrevieram-me pavores

Jó, preliminarmente, nos informa que as origens dos pavores não procederam das suas escolhas. Quando passamos por apertos, frutos de nossas más ações, é natural que reconheçamos e justifiquemos o sofrimento vivido. É justo que eu pague pelo pecado praticado! No caso de Jó, não. Ele estava sofrendo por uma disputa entre Deus e Satanás. Talvez seja por isso que muitos não aceitam este evento como um fato histórico. Mas vamos caminhar. 

Nós estamos acostumados a comparar felicidade com fartura, bem estar, marketing pessoal, bajulação, saúde, viagens, acúmulo de bens, fama (...). Pois bem, Jesus veio e mostrou o contrário. Segundo Ele, Felizes são os pobres de espírito, os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os limpos de coração, os pacificadores e os que sofrem perseguição por causa da justiça (Mt 5.3-10). Percebeu que a felicidade real não transita na esfera do Ter, mas do Ser, que ela é um produto interno e não depende do que acontece fora? É por isso que, se há alguém que possa se aproximar da felicidade bíblica, este é Jó. 

Nada que estava à sua volta o estimulava a ser feliz, segundo o nosso modo, é claro. Concorda?


Gosto muito de estudar o fenômeno religioso e sempre tenho o prazer e a disponibilidade de dialogar com irmãos pertencentes às comunidades cristãs (meus irmãos em Cristo). Quem está dentro não percebe, mas parte da cristandade está frequentando os cultos na intenção de se medicar, isto é, usando o ambiente como antidepressivo. É triste isso. Enquanto o pico de prazer estiver alto, funciona. Porém, ao voltar para o seu lar, o Eu interior tem que ser encarado novamente. Costumo dizer que nenhum artifício terreno pode interferir na nossa relação com O Eterno. Precisamos entender que os meios são apenas instrumentos para que sirvamos o Senhor melhor, em outras palavras, o fim último é obter uma relação vívida com o Redentor; não pelo céu (barganha) e tão pouco, por medo do inferno (ameaças). O Ser de Deus basta. Eis aí a felicidade! Lembra de Jó? Tudo indica que a felicidade das escrituras não precisa de motivos imanentes.


Na verdade, o que é felicidade?


O conceito de felicidade é humano e mundano. Nasceu na Grécia antiga, onde Tales julgava feliz "quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada". O Demócrito, de maneira quase análoga, definia a felicidade como "a medida do prazer e a proporção da vida", que era manter-se afastado dos defeitos e dos excessos. Por outro lado, Platão negava que a felicidade consistisse no prazer e a julgava, ao contrário, relacionada com a virtude. "Os felizes são felizes por possuírem a justiça e a temperança; os infelizes são infelizes por possuírem a maldade", são chamados de felizes "aqueles que possuem bondade e beleza" (ABBAGNANO, 1975, p. 434).


Enquanto os dois pré socráticos estavam focados nas circunstâncias, Arístocles (Platão), foi além, e afirmou que a felicidade é um atributo do Ser.

Parafraseando o platônico Agostinho (386), a felicidade é comparada à sabedoria. Ambas dependem do encontro da verdade e Deus é o Autor desse encontro, isto é, Platão acertou em quase tudo; só não sabia que a felicidade é ser encontrado pela Verdade, Jesus Cristo, Homem. 

Respondendo a Aristóteles, Plotino afirma algo interessantíssimo. Ele diz que:


Se a felicidade depende de uma vida boa, evidentemente devemos afirmar que essa é a vida do ente, pois ela é a mais excelsa. Ela não deve ser computada pelo tempo, mas pela eternidade: e a eternidade não deve ser nem maior, nem menor, nem de extensão alguma, mas ser isso mesmo que é inextenso e não temporal (PLOTINO, 270 d. C., p. 298-299).


Plotino ratifica a ideia de que é possível viver a felicidade no plano sensível (terreno), e não apenas no plano das idéias (celestial para os cristãos). Se eu pego carona na afirmação de Agostinho, a Felicidade é uma pessoa em nós (Jesus Cristo), faz sentido o que Plotino diz, porque o crente em Jesus, pertence ao Reino de Deus e ao Reino do Céu simultaneamente, portanto, segundo ele, é possível a felicidade agora.


Como vento perseguem a minha honra

Segundo ponto tratado por Jó é a reação dos pavores contra a sua honra. Ele afirma que eles a perseguem com a sutileza e a impetuosidade do vento.

Sabemos que a honra de Jó, vista pelas pessoas que o cercavam, era a honra de um homem adornado de posses; não estavam atentas à sua devoção a Deus, mas ao seu poder financeiro, às vagas de trabalho, enfim, a honra aqui implica o Jó social, o fazendeiro. 

Você e eu já estamos assistimos pessoas extremamente simples subir a montanha do sucesso e quando chegam ao topo, perdem o brilho no olho, pois percebem que no topo não tinha o que eles esperavam. E muitos desses que são honestos, afirmam: “eu era mais feliz quando estava no pé da montanha”. Não que as conquistas sejam ruins, a frustração é própria dos que esperam suprir o vazio com as coisas que estão fora do Ser. A verdade é que desde que mantenhamos as posses em seu devido lugar, não haverá frustrações. Cristo, O nosso Senhor, vai além e nos diz que: “não devemos estar apreensivos pela nossa vida, sobre o que comer, nem pelo corpo, sobre o que vestir (Lc 12.22). Se até o sustento, não deve tomar o nosso espírito, imagine as quinquilharias deste mundo. A respeito desta prática, para completar o raciocínio, Sêneca, um contemporâneo do Senhor, nos dá o seguinte conselho:


A felicidade é, por isso, o que está coerente com a própria natureza, aquilo que não pode acontecer além de si. Em primeiro lugar, a mente deve estar sã e em plena posse de suas faculdades; em segundo lugar, ser forte e ardente, magnânima e paciente, adaptável às circunstâncias, cuidar sem angústia do seu corpo e daquilo que lhe pertence, atenta às outras coisas que servem para a vida, sem admirar-se de nada; usar os dons da fortuna, sem ser escrava deles (SÊNECA, 2009, p.47).


A felicidade escrava dos bens, hoje, não é uma prática, mas uma cultura pregada pelos mestres de utopias (coachings) e misticamente, impregnada pela Teologia da Prosperidade. Onde o Ser é escravo do Ter. Treinamentos para que o indivíduo possa se tornar um Ser Humano, não inventaram ainda, talvez porque não encontram alunos. Eu fico aqui pensando, imagine se os mais de 8 bilhões de pessoas alcançassem os padrões de vida que eles vendem. A pergunta é: o que seria da terra? Se o universo não comporta, logo, vendem mentiras. Por outro lado, o mundo precisa dos espertalhões e dos ingênuos para ser mundo.


E como nuvem passou a minha felicidade

É nítido que Jó está passando por um processo intenso de relacionamento com Deus. E é natural que ele desça a felicidade ao nível da alegria. Pois a alegria são momentos e a felicidade, perene.  

Pois bem, o último ponto que quero ressaltar é a respeito da felicidade comparada ao excesso de picos de alegria. Há situações onde pensamos que quanto mais buscamos multiplicar os momentos de deleites mais a felicidade torna-se rotina. Isso para os que têm a felicidade como uma mera satisfação provisória. Quando uma mulher pediu a Al Mustafá, para que ele falasse da alegria, ele disse:


Sua alegria é sua tristeza sem máscara. E o poço do qual nasce seu riso muitas vezes esteve cheio de lágrimas. E como seria de outra maneira? Quanto mais fundo em seu interior a tristeza abre caminho, mais espaço se cria para a alegria. Não seria a taça que serve seu vinho a mesma taça que antes queimaram na olaria? E não foi o alaúde que acalma sua alma feito da mesma madeira que entalham a lâmina? Quando sentirem alegria, procurem no fundo do coração e saberão que só o que antes lhes deu tristeza pode hoje dar-lhes alegria. Quando sentirem tristeza, procurem uma vez mais e verão que hoje choram por aquilo que felicidade lhes trazia. Alguns de vocês dizem: “A alegria é maior que a tristeza”. Outros dizem: “Não, a tristeza é a maior”. Mas eu lhes digo que são inseparáveis. Sempre vêm juntas, e enquanto uma está a sós com vocês à mesa, não se esqueçam de que a outra adormece em sua cama. Em verdade vivem suspensos na balança entre tristeza e alegria. Só vazios podem encontrar o equilíbrio e o silêncio. Quando o guardião do tesouro os levanta para pesar o ouro e a prata, é inevitável que sua alegria, ou sua tristeza, suba ou caia (GIBRAN, 1883-1931, p. 45-47).


Segundo o profeta de Gibran, não há um prazer que não termine em dor e não há uma tempestade que não termine em calmaria. A vida precisa dessas oscilações para que possamos, com precisão, degustá-la. Não há alegria em uma cama se corpo não estiver surrado pelo cansaço; não haveriam lágrimas sobre o esquife de alguém que não trouxesse momentos de companhia e só prestigiamos a vida quando a morte nos rodeia. De nada disso depende a felicidade. Ela retira o medo da frente, como barreira, e o coloca atrás para impulsionar; ela faz das enfermidades e da noção da morte a nossa pedagoga; ela transforma as perdas numa relação madura entre nós e as posses; ela ensina que o desprezo, a rejeição e as ofensas são convites para enxergarmos a nossa natureza, em suma, a felicidade é a pessoa de Cristo vivendo o nosso Ser.


Diante de tais considerações, sei que não mergulhei o bastante neste mar de significados. No entanto, a intenção foi levar você a valorizar mais este termo. Por mais que busquemos a Felicidade, não a encontraremos, é Ela que nos busca, Cristo é o que torna o homem, um Ser acima das demandas da existência.


Por Daniel Santos



REFERÊNCIAS


ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1975, p. 434.


AGOSTINHO, Diálogo Sobre a Felicidade. Tradução do original latino, Introdução e notas de Mário A. Santiago de Carvalho. EDIÇÕES 70, Lda: Lisboa / Portugal, 2014, p. 58.


PLOTINO, Enéadas I-lll. Biblioteca Central; Desenvolvimento de Coleção Unicamp, p. 298-299.


SÊNECA, Lucius Annaeus. Da Tranquilidade da Alma. Tradução: Lucia Sa Rebello. Editora L& PM: Porto Alegre/RS, 2009, p. 47.


GIBRAN, Khalil, 1883-1931. O Profeta. tradução de Ana Guadalupe. – São Paulo: Planeta do Brasil, 2019, p.45-47.

Tecnologia do Blogger.